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O que há de novo?

Análise da conjuntura brasileira pós-eleições municipais

Por Antônio Augusto de Queiroz (*)

Em palestra sobre a conjuntura nacional, realizada em 21 de novembro de 2024, na cidade de Goiânia, durante o XX Encontro Nacional da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes), tive a oportunidade de abordar os três fenômenos contemporâneos e contextualizar os seis principais eventos políticos da atualidade no Brasil, que ora compartilho neste artigo.

Vivemos em um mundo em constante transformação, marcado por profundas desigualdades socioeconômicas e três fenômenos perturbadores que exigem enfrentamento urgente: a) o extremismo político, que coloca em risco a democracia no planeta; b) a disrupção tecnológica, com o emprego da inteligência artificial e a influência de algoritmo na formação da opinião pública; e c) as mudanças climáticas, cujos impactos incluem o aumento da temperatura e do nível do mar, a perda de biodiversidade e os efeitos devastadores na saúde humana, na segurança alimentar e nos recursos hídricos, entre outras graves consequências

Esses fenômenos contemporâneos, segundo Thomas Friedman[1], poderão mudar o modo como trabalhamos, aprendemos, ensinamos, negociamos, inventamos, colaboramos, administramos conflitos, enfim, como vivemos em sociedade.

Na verdade, do ponto de vista político e social, já estamos vivendo em um mundo profundamente desigual, caótico, confuso e sobretudo conflagrado, onde opiniões são formadas sem qualquer controle ou mediação, muitas vezes influenciadas por algoritmos, com o propósito de desestabilizar governos e instituições que contrariem interesses de setores do mercado, criando verdadeiras seitas fundamentalistas, antidemocráticas e anticiência.

Ambientes como esses são propícios para aproveitadores, que se valem da ignorância ou da boa-fé alheia para obter benefícios políticos e financeiros, mediante a tática de campanha de ódio e desinformação. Essas campanhas visam a prevalência do individualismo sobre o coletivismo, induzindo as pessoas a agirem menos por empatia, sentimento de justiça e solidariedade e mais por ganância, vaidade ou ressentimentos, fenômenos que fazem com que milhões de pessoas ao redor do mundo sofram com o problema “de dissonância ou de inconsistência cognitiva”, relacionada à absessão em validar suas crenças, convicções e comportamentos, mesmo quando estes se contrapõem à realidade ou às evidências científicas.

É nesse contexto que devemos analisar a conjuntura nacional. Vejamos a seguir:

A conjuntura política brasileira, além desses fenômenos globais, será impactada nos próximos dois anos pelo desdobramento de seis eventos: 1) o desempenho da economia, 2) o resultado das eleições municipais de 2024, 3) a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, 4) o ajuste fiscal em elaboração, 5) a disputa pelas presidências da Câmara e do Senado Federal; e 6) denúncia e julgamento dos indiciados pela polícia federal como mentores da tentativa de golpe no Brasil.

O modo como o governo e a sociedade vão lidar com esses eventos definirá a continuidade ou não do atual projeto político, que será avaliado e julgado na eleição de 2026. A seguir, analisamos cada um dos seis eventos citados.

  1. Desempenho da economia

Desde antes da posse, com a aprovação da PEC da Transição (transformada na Emenda à Constituição nº 126/2022) , o governo Lula tem atuado para garantir as políticas sociais e promover o crescimento da economia, com sustentabilidade fiscal, social e ambiental.

Nesse período, pelo menos quatro indicadores-chaves da economia se mantém positivo nesses dois anos de governo, a saber:

  1. PIB, que cresce;
  2. emprego formal, que aumenta;
  3. renda, que cresce; e
  4. A inflação, que se mantém dentro da meta.

A taxa de juros, que depende do Banco Central, cujo presidente foi indicado e atuou praticando a política do governo anterior, até chegou a cair alguns meses, mas voltou a subir neste ano de 2024.

Esse conjunto de resultados positivos na economia, entretanto, não se reverteu em apoio popular ao governo, mesmo com as campanhas feitas nesses dois anos. O governo Lula 3, por exemplo, relançou vários programas sociais, promoveu campanhas para pacificar o País, além do sucesso da gestão na economia, mas a “dissonância cognitiva” e a campanha de ódio contra o PT, o governo e as esquerdas interditam o debate e impedem que as pessoas vejam e reconheçam essas realizações.

Com a identidade “União e Reconstrução”, o governo federal já conduziu quatro campanhas publicitárias de grande impacto, cada uma com um slogan distinto e com objetivos estratégicos específicos. A ordem das campanhas reflete as principais realizações e desafios enfrentados pelo governo até o momento, conforme segue.

1. O Brasil Voltou: primeira campanha teve como foco o retorno de importantes programas sociais e de saúde que haviam sido reduzidos ou encerrados em governos anteriores, como o Zé Gotinha, Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida, Brasil Sorridente e Farmácia Popular. Essa campanha reforçou a mensagem de que o governo estava restaurando direitos e serviços essenciais para a população.

2.Brasil no Rumo Certo: segunda campanha, com o slogan “Brasil no Rumo Certo”, teve como objetivo promover os avanços estruturais do programa governamental. Entre os destaques, estavam os investimentos em cultura e a retomada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a aprovação da Reforma Tributária, a alteração na política de preços da Petrobras e o reajuste do salário-mínimo. Essas medidas simbolizam o progresso econômico e social almejado pelo governo.

3.O Brasil é um só povo: esta campanha visava à despolarização política e social do Brasil, incentivando a união nacional. Em um momento de intensa divisão ideológica, a mensagem era clara: promover a paz social e resgatar a coesão entre os brasileiros, mostrando que, apesar das divergências, o Brasil é uma Nação única e forte.

4. Fé no Brasil: quarta campanha, “Fé no Brasil”, foi desenhada para inspirar confiança e otimismo em meio às dificuldades enfrentadas pelo País.  A mensagem central era de que, mesmo diante de desafios econômicos e sociais, o governo e a população mantinham a confiança de que as coisas iriam melhorar, refletindo a resiliência e a esperança do povo brasileiro.

Nenhuma dessas campanhas produziu os resultados esperados em termos de apoio popular ao governo. O fato de terem tido curta duração pode explicar, mas não justifica. Há algo mais consistente impedindo que a mensagem chegue ao conjunto da população.

2 – Resultado das eleições municipais de 2024

A eleição municipal foi marcada pela continuidade, com grande circulação no poder, e com forte influência do poder econômico, que resultou na recondução da maioria absoluta dos prefeitos e vereadores que buscaram a reeleição, e, no caso daqueles que não puderem ou não tentaram a renovação do mandato, houve a eleição de seus aliados, principalmente daqueles com experiência na máquina pública.

Para se ter uma ideia – embora a renovação tenha sido da ordem de 56%, com a continuidade de 44% dos atuais prefeitos – dos 3.006 que tentaram a reeleição, 82% tiveram sucesso. E os que desistiram ou já tinham sido reeleitos, em sua maioria, fizeram o sucessor.

Como a maioria dos atuais prefeitos e vereadores pertence aos partidos do Centrão (MDB, PSD e União Brasil) e da direita (PL, PP e Republicanos), era natural que essas forças políticas predominassem nas eleições, o que de fato ocorreu. Embora os dois principais partidos de esquerda (PT e PSB) também tenham crescido, esse aumento foi proporcionalmente menor em comparação com as agremiações de direita.

Assim, há duas formas de analisar o resultado das eleições municipais: 1ª) tendo como referência a eleição de 2020, e 2ª) tomando por base a quantidade de prefeitos e vereadores de cada partido seis meses antes da eleição, após a janela partidária. Os partidos beneficiados pela migração de parlamentares para representações partidárias distintas, especialmente os do centrão (PSD, MDB e União Brasil) e os dois principais da esquerda (PT e PSB), cresceram na eleição de 2024 em relação a 2020, porém decresceram em relação às bancadas atuais. Os principais partidos de direita (PL, PP e Republicanos), por sua vez, cresceram nos dois critérios, tanto em relação a 2020 quanto em relação à bancada atual nos municípios[2].

Quanto aos fatores que influenciaram os resultados das urnas no pleito de 2024, destacamos quatro vetores cruciais:

 1º) a máquina partidária e seus recursos de poder, expresso pelo repasse de dinheiro dos fundos eleitoral e partidário para as campanhas de seus candidatos, e pelo tempo de rádio e televisão;

2º) o uso do orçamento secreto e das emendas impositiva, inclusive as emendas Pix, repassada por deputados e senadores para seus aliados em suas bases eleitorais;

 3º) as máquinas estaduais e municipais a serviço dos partidos dos governadores e dos prefeitos, com milhares de ocupantes de cargos comissionado nas campanhas; e

4) a suspensão temporária da rede social X (antigo Twitter) por decisão judicial, que coincidiu com o primeiro turno das eleições.

Os três primeiros fatores (recursos dos partidos, emendas impositivas e máquinas dos governos estaduais e municipais) beneficiaram principalmente os grandes e médios partidos, em especial os do Centrão e da direita, que detinham a maior parte desses recursos. Já a suspensão da rede social X prejudicou os partidos de direita e a oposição radical, uma vez que essa plataforma era seu principal meio para divulgar notícias falsas e ações de desinformação contra os demais partidos, em geral, e à esquerda, em particular.

A eleição de 2024 sinalizou a emergência de três blocos partidários:(1) PSD, MDB e União Brasil, o novo centrão; (2) PL, PP e Republicanos, que reúne os grandes e médios partidos de direita; e (3) PT, PSB, PDT, PCdoB, PSOL, PV e REDE, que reúne os partidos de esquerda.

A leitura do resultado das eleições municipais, portanto, embute uma disputa de narrativa, pela qual setores da mídia e da oposição buscam criar uma imagem de enfraquecimento da base governista, com o propósito de forçar o Presidente da República a ceder espaço às forças de centro e centro-direita, tanto no governo quanto no conteúdo das políticas públicas, leia-se ajuste fiscal.

Nesse contexto, a habilidade do governo em moldar a narrativa é crucial. Lula precisa reforçar a ideia de que sua base política continua estável, promovendo ações que demonstrem a capacidade do governo em atender às demandas locais e fortalecer o apoio em regiões estratégicas. Isso pode ser feito tanto por meio de investimentos em políticas locais quanto pelo incentivo a alianças regionais que ampliem o alcance de sua base, especialmente com vistas às próximas eleições presidenciais.

3) Eleição de Donald Trump nos Estados Unidos

A vitória de Donald Trump nas eleições americanas representa um desafio complexo para o governo Lula, especialmente na dimensão geopolítica. Trump, ao contrário de Joe Biden, tende a adotar uma postura mais conservadora e menos cooperativa com líderes progressistas da América Latina, além de ter demonstrado afinidade política com figuras da direita brasileira, como o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Portanto, o retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, se nada for feito, poderá ter fortes consequência negativas para o governo brasileiro, tanto em potencial dificuldades nas relações comerciais entre os dois países, pela notória divergência ideológica entre os dois dirigentes, quanto em relação ao fortalecimento da narrativa da extrema-direita brasileira em defesa da elegibilidade de Bolsonaro.

Para Lula, uma gestão diplomática cuidadosa é essencial para neutralizar qualquer interferência negativa que uma presidência de Trump possa ter sobre a política interna do Brasil e sua posição internacional. O presidente brasileiro, que manifestou apoio à candidatura de Kamala Harris, terá de empregar suas habilidades diplomáticas e buscar canais de diálogo que preservem os interesses brasileiros em um cenário de possíveis tensões. Isso pode incluir uma diplomacia ativa com países europeus e uma maior aproximação com nações da América Latina, promovendo uma visão de solidariedade regional, além de intensificar as relações comerciais com a Ásia, em particular com a China.

4) Ajuste fiscal em elaboração

A pressão sobre o governo pelo corte de despesa, incluindo o enquadramento dos gastos governamentais com saúde, educação e salário-mínimo tem sido enorme, inclusive reforçada pelo resultado da eleição municipal e a eleição de Trump. Para esse fim, entre outras medidas, estaria a limitação do crescimento máximo de despesas com saúde, educação e outras a 2,5% acima da inflação, a mesma regra de correção do teto de despesas como um todo.

Além da desvinculação orçamentária, com enquadramento de todas as despesas no arcabouço fiscal, deve haver mudanças nos critérios de concessão de abono salarial, do seguro-desemprego, do seguro-defeso e da assistência social, especialmente para idosos e pessoas com deficiência.

O argumento central é de que o ajuste fiscal será uma peça-chave para a estabilidade econômica e, consequentemente, para a confiança do mercado, que tem especulado muito quanto a capacidade do governo de honrar seus compromissos com as dívidas interna e externa.

O ajuste fiscal, por isso mesmo, é um ponto sensível que trará desgaste ao governo, especialmente porque envolve medidas de corte de despesas que podem afetar políticas públicas voltadas para as classes mais vulneráveis. No entanto, caso seja bem calibrado, é um passo necessário para a sustentabilidade das contas públicas e para atender às demandas do mercado por uma gestão responsável dos recursos.

Uma das estratégias para compensar os eventuais impactos sociais é a de enfrentar privilégios econômicos de setores que historicamente se beneficiaram de isenções fiscais e incentivos e até mesmo a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas.

Esse ajuste, para ser justo, deve envolver a aprovação de reformas tributárias, que visam uma arrecadação mais justa, e o corte de despesas, que precisa ser conduzido com cautela para não atingir apenas as camadas mais vulneráveis da sociedade. O desgaste será inevitável, inclusive com a acusação de estelionato eleitoral.

5) Disputa pelas presidências da Câmara e do Senado Federal.

A eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal será uma oportunidade crucial para o governo consolidar sua base de apoio parlamentar.

Em um cenário onde as reformas e ajustes fiscais dependerão da aprovação do Legislativo, é vital que o governo consiga estabelecer uma base de apoio sólida que inclua partidos como o União Brasil, o MDB e o Republicanos. Esses partidos, embora integrem o governo, ainda se mostram hesitantes em se comprometer como parte efetiva da base aliada.

A tendência será de eleição de Hugo Mota (Republicanos-PB) na Câmara, como candidato único, e a eleição de Davi Alcolumbre (União Brasil/AP), no Senado também como candidato único.

  • Denúncia e julgamento dos envolvidos na tentativa de golpe no Brasil

O julgamento e a punição dos mentores e do núcleo operacional da tentativa de golpe, que incluiu até plano de assassinato do presidente da República, do seu vice e de um ministro do Supremo Tribunal Federal, devem ser rigorosos, caso o Ministério Público apresente denúncia formal. A tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito é um crime gravíssimo e não pode ser tolerado ou permanecer sem resposta.

A escalada da violência política exige das instituições o endurecimento contra as ações da extrema direita, sob pena de se sentirem liberados para cometer qualquer tipo de atrocidade. Após os indiciamentos conduzidos pela Política Federal, a expectativa é de que os processos avancem para denúncias e condenações exemplares, incluindo penas de prisão em regime fechado. Isso enfraquecerá iniciativas que busquem anistiar os envolvidos nos atentados de 8 de janeiro de 2023, assim como aqueles ligados a eventos subsequentes, como o caso do homem bomba em frente ao STF em 13 de novembro de 2024. A responsabilização certamente se entenderá ao ex-presidente Jair Bolsonaro, em função de seu papel nos episódios investigados.

Conclusão

Diante desses cenários, fica evidente que o campo popular e democrático enfrenta um desafio monumental, que exigirá estratégia política apurada, organização e mobilização eficazes. Embora a reeleição do presidente Lula seja uma possibilidade concreta, o resultado dependerá de fatores cruciais, como: 1) o desempenho do governo, especialmente na área econômica, nos próximos dois anos; 2) a capacidade de comunicação, articulação e engajamento das forças progressistas; 3) a construção de alianças com setores do centro político em uma frente eleitoral ampla; e 4) o grau de unidade das forças de direita e centrão no País.

A eventual coalizão entre o centrão e a direita pode ser decisiva, considerando o fortalecimento desses grupos nas recentes eleições municipais, em estados estratégicos como São Paulo, Goiás e Paraná, onde lideranças como Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e Ratinho Junior, respectivamente, consolidaram suas posições. Um candidato unificado desse espectro político tem potencial para romper a polarização entre Lula e o bolsonarismo no pleito de 2026.

Mesmo que o governo Lula continue demonstrando capacidade de combinar democracia com crescimento econômico, controle da inflação, distribuição de renda e respeito à ciência e ao meio ambiente, o sucesso eleitoral em 2026 depende, inevitavelmente, de uma articulação sólida com o centro político. Paralelamente, o potencial crescimento da direita e da extrema-direita no Senado, com a renovação de 54 das 81 cadeiras, é um desafio que deve ser levado em conta.

Duas tendências parecem claras: Jair Bolsonaro estará ausente das urnas em 2026, mas o avanço das forças conservadoras no Legislativo será expressivo. Para evitar que a extrema-direita retorne ao poder, como ocorreu nos Estados Unidos, será imprescindível desinterditar o debate político, restabelecer o diálogo com a maioria da população e reforçar a conexão com os segmentos que mais dependem do Estado para inclusão social e oportunidades.

(*) Antônio Augusto de Queiroz – Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Sócio-diretor da empresa “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável) da Presidência da República – Conselhão.


[1] Jornalista estadunidense e escritor, é autor do livro “O Mundo é Plano” (2005).

[2] Maiores detalhes, ver:  https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/92014-eleicoes-2024-analise-de-sua-complexidade-por-antonio-queiroz

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