Artigo da Presidenta da APUB Sindicato, Professora Raquel Nery
Temos nos ocupado bastante com a democracia, em discuti-la e compreendê-la a partir de diferentes aspectos. Fala-se muito, no debate público, sobre seu caráter sempre inacabado, sua transformação contínua. Eu, particularmente, gosto da ideia de que é a melhor coisa que inventamos. Foi o que afirmou Mujica em uma de suas últimas entrevistas. “É uma porcaria”, disse ele, “promete e não cumpre (…), mas até agora é o melhor que conseguimos alcançar”. E acrescentou com a solenidade resignada dos que aguardam a morte: “está em crise”.
Mesmo que não seja exato, não é incorreto afirmar que a crise da democracia desceu ao lugar comum das nossas interações cotidianas no 8 de janeiro de 2023, quando percebemos que por muito pouco não sucumbimos outra vez ao desastre autoritário. Desde então, não raro nos perguntamos o que nos teria acontecido, onde estaríamos agora, jornalistas, cientistas, artistas e promotores da cultura, parlamentares do campo progressista, sindicalistas, professoras e professores de universidades e institutos federais e seus reitores e reitoras, isto é, todos e todas que denunciaram e se mobilizaram contra os absurdos praticados pelos agentes do Estado naqueles anos difíceis.
Sim, rupturas institucionais acontecem e estivemos à beira do abismo. Mas não é por esta via apenas que as democracias morrem. Vozes importantes nesse debate, como a dos estadunidenses Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, alertam que elas também podem ser lentamente erodidas. Levitsky e Ziblatt indicam em seu livro “Como as democracias morrem” a importância de que certas normas políticas, mesmo não escritas, sejam observadas para a saúde das instituições democráticas, como a tolerância mútua e a autocontenção institucional. Voltarei a elas.
Faço esta já longa introdução para contextualizar o que aconteceu à APUB no último dia 13 de agosto, no Conselho Superior do Instituto Federal da Bahia, instância consultiva e deliberativa em que nossa entidade tem assento perene desde 2009, representando ali docentes do Magistério Superior e EBTT, desde que os Institutos Federais foram criados pela Lei 11.892/2008, integrando os antigos CEFETs (junção dos CENTECs e Escolas Técnicas Federais) e instituindo a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.
O Conselho Superior do IFBA, segundo seu Regimento (aprovado em 16 de maio de 2018), é composto por “representantes dos docentes, dos discentes, dos servidores técnico-administrativos, dos egressos da instituição, da sociedade civil, do Ministério da Educação e do Colégio de Dirigentes do Instituto Federal, assegurando-se a representação paritária dos segmentos que compõem a comunidade acadêmica.” Até o dia 13 de agosto tinha em sua composição seis representantes da sociedade civil, sendo dois indicados por entidades patronais e dois indicados por entidades dos trabalhadores. Mas uma mudança no Regimento excluiu a representação dos docentes do Magistério Superior do IFBA, que não têm mais representação perene em seu CONSUP.
Proposta de uma conselheira docente com atuação no SINASEFE – IFBA, seção sindical de sindicato nacional homônimo, resultou em alteração do Artigo 4º do Regimento do CONSUP, para que a representação sindical dos trabalhadores da instituição seja feita unicamente pela sua entidade. A proposta fere os princípios constitucionais da pluralidade política e da livre associação, silencia a voz legítima da APUB e contraria um dos princípios de seu próprio regimento (do SINASEFE IFBA), que postula a solidariedade “a todos os movimentos da classe trabalhadora” (Art. 8º).
A proposta foi primeiramente apresentada no apagar das luzes de uma longa reunião, que já durava 8 horas, no último dia 18 de junho, em flagrante descumprimento do próprio Regimento em vigor, que indica que mudanças no regimento exigem sessão com pauta única e quórum de ⅔ (Art. 40), ambas as condições ausentes na ocasião. O Prof. Marcos Gilberto dos Santos, representante da APUB no conselho, foi obrigado a fazer o pedido de vistas para retirar a proposta de votação e voltar em sessão posterior.
Depois de protagonizar consistente e respeitosa mobilização, buscando, pelo diálogo, o convencimento dos pares sobre a legitimidade e pertinência da representação plena de nossa entidade, no dia 13 de agosto, após longa discussão, o representante APUB apresentou a proposta de continuidade das duas representações sindicais no conselho a fim de que todas as carreiras atuantes no Instituto tivessem a sua representação garantida. O quórum da reunião era formado por vinte pessoas: dezenove conselheiros mais a presidenta, reitora do Instituto. O resultado foi que 10 dos 19 conselheiros votaram pela permanência da APUB. O voto da Reitora, contrário à permanência da APUB, empatou o resultado. Diante do impasse, a reitora lançou mão de suas prerrogativas regimentais e apelou ao voto de qualidade, em que não há ilegalidade, mas finalidade negativa e questionável. A reitora votou duas vezes. Votou duas vezes contra a representação da entidade de docentes federais mais antiga do Brasil e a que reúne na Bahia o maior número de professores filiados. A reitora votou duas vezes contra a entidade que representa, conforme prevê seu estatuto, os docentes do Magistério Superior da instituição que dirige, deixando-os sem voz no Conselho, já que o SINASEFE, também de acordo com seu próprio estatuto, não pode representá-los. A reitora votou duas vezes contra a APUB, o sindicato a quem buscou (e por ele foi acolhida) em dezembro de 2019, quando lutava, junto com outras forças políticas do campo democrático, pela legítima nomeação que lhe fora negada pelo então presidente Bolsonaro.
Há algo mais a ser relatado: no período entre 2014 e 2019, o então reitor do Instituto apresentou proposta semelhante, mas contra o SINASEFE – seção sindical IFBA, entidade que agora foi proponente de nosso silenciamento. Na ocasião, o conselheiro APUB era o Prof. Ubiratan Felix, que se posicionou firmemente contra a proposta, advertindo ao presidente do CONSUP e a todos os conselheiros sobre a importância de que as trabalhadoras e trabalhadores continuassem, junto com a APUB, perene e plenamente representados por aquela entidade, para o bem da democracia e da saúde institucional do IFBA. A proposta foi retirada, não chegando nem mesmo a ser votada. Nosso conselheiro APUB não fez um favor ao SINASEFE, nem foi instado pelos seus então dirigentes a fazê-lo. Agiu pela sua consciência democrática e cidadã, a consciência de que há regras não escritas que são tão importantes quanto as verbalmente enunciadas no Regimento.
Voltemos, neste ponto, ao que dissemos acima sobre a lenta erosão que as democracias podem sofrer, no momento mesmo em que, imagino, o leitor esteja se perguntando pelas razões de tão temerária manobra e decisão. As razões podem ser encontradas no esforço que tem sido realizado por algumas entidades para enfraquecer e combater a APUB, que se reafirma como sindicato autônomo e de base. Este foi o mesmo mote do SINASEFE que, em conjuração com o ANDES, agiu para interferir na autonomia da APUB, que buscava, através da ratificação de sua fundação e do seu estatuto, a obtenção de registro sindical junto ao Ministério do Trabalho e Emprego. O conluio das duas entidades marcou um ponto de inflexão na relação entre as entidades sindicais que, embora com concepções de democracia e de sindicato distintas, conviviam em clima geral de tolerância com a existência umas das outras. No evento, as seções sindicais dirigidas pelo SINASEFE e pelo ANDES transformaram a tentativa de assembleia num cenário distópico de violência simbólica e política, com insultos, gritarias e xingamentos contra a diretoria da APUB. A violência, infelizmente, chegou mesmo às vias de fato. A tática dessas entidades aliançadas é impedir que a APUB continue existindo como sindicato de base e autônomo. É importante lembrar que esta mesma estratégia tem sido mobilizada em outros Estados para eliminar entidades sindicais autônomas e de base que são filiadas ao PROIFES.
Ao fundo nos espera o debate sempre interditado sobre concepção de organização sindical, num momento em que a taxa de filiação de trabalhadores a entidades que lhes representam cai de forma expressiva e preocupante. Condutas antissindicais como as de que APUB e PROIFES têm sido vítimas são previstas como ilícitos pela nossa Constituição e por convenções da OIT. Essas condutas, que tradicionalmente têm origem patronal, causam profundo estranhamento, já que entre trabalhadores costuma prevalecer a solidariedade e a luta conjunta. Testemunhamos desde a greve de 2024 a tentativa de transformação do PROIFES em um “inimigo comum”, procedimento conhecido e antigo, fundamental para a organização e consolidação de regimes autoritários. E é neste ponto que, por fim, retorno às normas não escritas acima mencionadas, indicadas por Levitsky e Ziblatt.
No que diz respeito à tolerância mútua, quero destacar que, para o bom funcionamento de nossas instituições democráticas, é necessário reconhecer os adversários como legítimos. Ideias divergentes, numa democracia, devem ser debatidas, não silenciadas. O SINASEFE, portanto, atenta contra a democracia, deslegitimando a APUB no Conselho pela alegação esdrúxula de que ao CONSUP deve se aplicar a regra da unicidade sindical, uma regra que, de acordo com a portaria 3.472/2023 do MTE, é aplicada apenas para a concessão de registro dentro de uma base territorial. Registro sindical que, convém lembrar, nenhuma entidade de docentes federais da Bahia possui. Enquanto a APUB luta para obtê-lo, ANDES e SINASEFE instrumentalizam suas seções sindicais para interpor obstáculos a esse justo propósito. Num quadro geral de precarização do trabalho formal e de esvaziamento e enfraquecimento das instituições classistas, é absurdo que essas entidades atuem de forma a impedir que atores do campo democrático popular consolidem organização alternativa.
Quanto à norma da autocontenção institucional, recomenda-se às instituições democráticas que não usem todos os recursos possíveis contra “o outro lado”. A não observância dessa norma converte os poderes institucionais (lembremos que Minerva usou seu voto para absolver um quase condenado) em armas contra quem se lhe opõe dentro do jogo democrático. O voto de qualidade da reitora, que excluiu a representação APUB do CONSUP IFBA, contrariou o caráter virtuoso que subjaz aos poderes do mandato que lhe foi concedido pelo voto.
Não há vencedores nessa decisão. Perde a Democracia. Perde o Instituto Federal da Bahia, em que a APUB atua legitimamente, representando a docência do Magistério Superior desde os anos de 1970, a partir do antigo CENTEC. Perdem as/os docentes, silenciadas/os e agora sub representadas/os na instância máxima de deliberação da instituição da qual fazem parte. Perde o movimento docente, que insiste na substituição da solidariedade de classe pela perseguição. A dirigente máxima do IFBA também perde e se apequena ao ceder suas prerrogativas regimentais a tão obtusa finalidade.
À APUB cabe o relato, a denúncia e o repúdio, tanto quanto a defesa contínua e inquebrantável da Democracia, ameaçada e erodida não apenas pelo fascismo que avança e nos espreita logo ali, na esquina de 2026.
Salvador, 15 de agosto de 2025.
Fonte: APUB